quinta-feira, 18 de julho de 2024

Biboca, a estação

O Almanário de Pelotas (Ayrton Centeno, 2022) registra a palavra "biboca" como derivada de uma estação da antiga linha Bagé-Rio Grande, inaugurada em 1884 no município de Herval (confira no sítio Estações Ferroviárias do Brasil), hoje Pedras Altas. Em nossa região, o termo tem o sentido de "cafundó, fim de mundo".

O Novo Aurélio (1975) define biboca como: escavação ou erosão de terreno; vale profundo e de acesso difícil; habitação muito modesta; casa muito distante, toca, cova, buraco, grota. A origem: do tupi ibi (terra) + boka (gerúndio de bog, fender-se). Este dicionário não diz, mas permite entender a expressão como "buraco abrindo-se na terra". 

O Vocabulário Sul-rio-grandense (Globo, 1964) dá a mesma origem do tupi, e o significado de "barranqueira". O dicionário etimológico de Antônio Geraldo da Cunha (2007) confirma a origem e acrescenta uma definição encontrada em 1870: "logradouro frequentado por indivíduos de baixa condição". A mesma informação está num vídeo recente da página Linha Campeira. Ver também o dicionário indígena de Nelson França Furtado (1969, p. 30).

A estação citada no Almanário existiu, até 1968, mas não tem relação com o nosso significado regional de "lugar afastado". A palavra é mais antiga e significa no tupi "grande buraco na terra, cânion", como relata Cássio Gomes Lopes, no vídeo abaixo.

terça-feira, 16 de julho de 2024

Pancho, o hot dog

 No sul do Brasil, é conhecido que o cachorro-quente,  criado nos Estados Unidos como hot dog, tem uma versão castelhana, o pancho. Mas de onde veio esse nome para o lanche de salsicha? Nem o povo nem os especialistas explicam. 

  • O dicionário oficial da língua espanhola relaciona o pancho com o choripán, como se tivessem a mesma origem e formação, o que não parece verossímil. Chorizo+pan origina choripán, não sendo necessário outro nome para a mesma coisa. (A versão com salsicha seria salchipán?)
  • O Diccionario Etimológico del Lunfardo, do argentino Oscar Contardo (2004), tem o verbete Pancho, mas não arrisca uma hipótese.
  • A Wikipedia em espanhol tem o verbete hot dog, que traduz como pancho ou perro caliente, sem dizer claramente a origem de "pancho"; somente dá como pista que é feito com frankfurter.
  • Curiosamente, a Wikipédia em português tem o verbete pancho, especifica que se trata do cachorro-quente argentino, mas tampouco busca explicações. Este verbete só existe em português (veja-se o impacto de um termo castelhano no Brasil e a força da cultura uruguaia, que promove os panchos há décadas entre nós).

1º o embutido de carne

Quando as salsichas começaram a ser trazidas da Europa, após o Descobrimento, usou-se primeiro a forma francesa (saussiche, atualmente saucisse) e a italiana (salsiccia), que deram no inglês sausage, espanhol salchicha e a nossa salsicha. 

Todas essas formas vêm do latim tardio farta salsicia (embutidos salgados), conforme achei nos links acima da Wikipédia e do Dicionário da RAE (Real Academia Española). Salsicha, portanto, é plural de salgado: comidas salgadas.

2º o sanduíche

A expressão de origem latina, em referência aos embutidos, se consolidou na América toda. Porém, no século XIX surgiram os sanduíches feitos com o tal enchido de carne suína e gordura, e precisavam de um nome comercial, sonoro e visual. Veio a associação (no inglês) com os cães-texugo (dachshund), não comestíveis no ocidente, mas parecidos no formato. 

O novo sanduíche (hot dog), criado em 1880 ou 1904, conforme cada relato, inspirou-se no cachorro de raça alemã. No Brasil, o cachorro foi apelidado "cão-salsicha", justamente em honra ao hot dog. Nossa cultura importa tudo, mas costuma aplicar a lei do mais fácil.

3º a tradução

Como criar um nome local para o produto estrangeiro dar certo também? Pode-se aportuguesar a pronúncia (como se fez com "futebol", de football); pode-se traduzir ao pé da letra (cachorro-quente), neste caso com hífen por tratar-se de conceito novo, diferente de "cão quente". 

Pancho [pán-tcho] é apelido de Francisco para os hispânicos (na fala infantil, pantchico). Veio rebatizar a salsicha importada, certamente no século XX, que chegava sob a complicada forma alemã Frankfurter Würstchen (salsicha de Frankfurt), impronunciável para os latinos. Foi reduzida para frankfurter e logo Frank, equivalente a Francisco: Chico, para nós. 

A cidade de Frankfurt chama-se assim porque, sendo parte da antiga Francônia, foi fundada num vau do rio Meno; em alemão, frankfurt significa "passo dos francos". Fica no sudeste da Alemanha, atual Baviera (alemão Bayern, latim Bavaria). 

Não deixa de ser engraçado que, nos restaurantes gaúchos onde servem panchos, o cliente tem que saber a diferença entre estes, considerados uruguaios, e os cachorros-quentes, nos quais se usa a receita brasileira regional. Em nenhum outro país se encontra o mesmo prato sob duas receitas.



domingo, 14 de julho de 2024

Pelota, a embarcação

O município gaúcho de Pelotas surgiu oficialmente em 1812 como Freguesia de São Francisco de Paula, pertencente à atual Rio Grande, que desde 1751 era a Vila de São Pedro do Rio Grande. Nossa vizinha-mãe foi o primeiro núcleo de colonização portuguesa na Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, futuro Estado do Rio Grande do Sul. A primeira cidade e primeira capital deu nome à província e ao estado. O tal "rio grande" era a enorme foz da Lagoa dos Patos, que pensaram ser um rio.

O nome cristão

A nova freguesia (v. origem do termo) tomou o nome de São Francisco de Paula (1416-1507, italiano de Paola, Calábria), santo de 2 de abril, dia em que as forças portuguesas conseguiram expulsar a ocupação espanhola da Vila de Rio Grande, em 1776 (v. histórico). Devoção e gratidão fizeram que a memória desse Francisco perdurasse, e não só em nossa região, já que o santo é patrono de outras 7 cidades brasileiras (RS, SP, RJ e MG), conforme Wikipédia.

Desde 1812, aquele distrito rural, ainda dependente de Rio Grande, urbanizou-se e cresceu rapidamente, emancipando-se, em 1832, como Vila de São Francisco de Paula (v. Wikipédia). Foram vinte anos de impressionante progresso na futura cidade, assim como no país, que, nesse curto período, evoluiu de colônia portuguesa (então visitada por toda a corte real) até Império do Brasil (agora independente da pátria-mãe).

Em 1835, o governo da província imperial elevou as duas vilas à condição de Cidade, pela lei provincial nº 5, de 27 de junho daquele ano: Rio Grande a mais antiga, e Pelotas a vila desmembrada da anterior.

O nome pagão

O nome de Pelotas foi tomado do costume que já existia em 1812 de se referir a esta área como a vizinhança do "rio das pelotas". Na época, a expressão não parecia adequada para um nome eclesiástico: paróquia de Pelotas (Igreja e Estado, ainda unidos, denominavam a paróquia e a freguesia, cada um em seu âmbito). Pelota é diminutivo depreciativo de bola (do latim bulla, esfera).

O curso d'água hoje conhecido como Arroio Pelotas tem 60 km desde seus dois afluentes na Serra dos Tapes até desaguar no Canal São Gonçalo. Ficou como "arroio" apesar de ter características de rio (v. Wikipédia). O fato de não desembocar no oceano não seria bastante motivo para essa redução. Pode ter predominado a existência do Rio Pelotas na divisa entre os estados do sul (RS/SC). 

Conforme Bueno, Barreto e Dias (USP, 2021), foi nesse Rio Pelotas, mais tormentoso que o nosso, que Debret observou e pintou, no início do século XIX, o uso de barquinhos de couro puxados por um nadador (a legenda em francês: barque bresilienne faite avec un cuir de boeuf). 

Temos como certo que as pequenas embarcações, batizadas pelos portugueses (não pelos indígenas, que podem tê-las inventado mas não com esse nome), denominaram a região, logo esta palavra batizou o município e posteriormente tudo o que há nela: Porto de Pelotas, Shopping Pelotas, duas universidades, clube esportivo (de futebol, o esporte das pelotas). 

A polêmica parece estar na etimologia, que separa dois tipos de significados (possivelmente também origens diversas): 

  • a pelota esfera (dicionarizada como 1) e 
  • a pelota embarcação (dicionarizada como 2), onde os pesquisadores divergem: ou se relaciona com "péla" (forma esférica) ou com pele (material de couro). 

Conforme Antônio Geraldo de Macedo (2007), pelota vem do latim pila e seu diminutivo pilella, que deu no português "péla" (bola de brinquedo) e no espanhol pelota (com sufixo -ota). 

No entanto, o significado de pelota como embarcação é considerado regionalismo (RS e MT). Visitantes de outros países ou do norte do Brasil ficam estranhados e perguntam aos guias turísticos se o futebol é tão importante em Pelotas que chegasse a batizar a cidade.

Note-se que o dicionário oficial espanhol distingue: 

  • pelota 1 (esfera), relacionada com o latim pila, onde é listada nossa famosa embarcação americana: batea de piel de vaca que usaban en América para pasar los ríos personas y cargas;
  • pelota 2 (estar em pêlo), relacionada com pelote, roupagem menor, que deixa a pessoa seminua, quase "em pêlo". O linguajar hispânico deve ter ligado esta antiga camisola com a sonoridade pejorativa de "pelota" (e a nudez total associada).

Algumas definições de Pelota em português:

  • Embarcação ligeira, tosca e pequena, feita de um couro de boi inteiriço, utilizada para transportar passageiros de uma à outra margem de um rio (Novo Aurélio, 1975).
  • Grande cesto feito com o couro de boi, servindo de bote para a travessia dos rios (Cândido de Oliveira, 1967).
  • Couro de boi recobrindo um trançado de varas que serve de meio de transporte de pessoas e cargas de uma margem à outra de um rio (Michaelis).

A ideia mais difundida é que a embarcação foi batizada "pelota", provavelmente no Brasil, em função de sua forma arredondada, de péla; esta possibilidade é defendida pelo etimologista gaúcho José Romaguera Corrêa (Vocabulário Sul-rio-grandense, 1898). Considere-se que, entre as muitas acepções ligadas a pelota 1, está a de "fardo, pacote, trouxa"; a pelota era levada como um fardo. Mas também pode lembrar-se a relação, em português, com pêlo, do latim pilu (Novo Aurélio, 1975), do qual podia ser feita a pelota (Macedo, 2007).

A hipótese da pele de boi como material da pelota está no Michaelis, foi proposta pelo antigo pesquisador Henrique de Beaurepair-Rohan (1889), que nem era gaúcho nem viveu muito tempo na região, e hoje não é lembrada. 

Em 7 de julho de 2012, uma travessia de pelota foi encenada de uma beira a outra do Arroio Pelotas (v. nota). Abaixo uma parte filmada.


sexta-feira, 12 de julho de 2024

Lobo da Costa, dia 12, ano 12

Cada 12 de julho se lembra o natalício de Francisco Lobo da Costa, destacado escritor do século XIX (1853-1888). Batizado Francisco como seu tio paterno, é Lobo por parte de mãe e Costa como o pai. Seu prenome era comum na ex-freguesia de São Francisco de Paula (batizou-o o padre coadjutor Francisco Pinto, na adolescência trabalhou no cartório de Francisco das Neves), todos eles provenientes do santo de Assis (1182-1226).

Nasce em família humilde numa Pelotas opulenta, imperial, charqueadora, escravagista, ferida pela Revolução Farroupilha (1835-1845) e agitada pela Guerra do Paraguai (1864-1870). 

Aos 12 anos publica seu primeiro texto, momento em que desperta para a poesia (v. Wikipedia), um despertar de vida eterna, pois nunca mais deixa o caminho da expressão da alma. 

O poeta ganhou tardias homenagens em sua cidade natal. Em 1934, a rua São Paulo (que desde sua criação em 1830 tivera denominações diversas) foi renomeada Lobo da Costa, somente no setor ao leste da praça Coronel Pedro Osório. Trinta anos depois, o trecho oeste, antes conhecido como rua Dr. Urbano Garcia (Os Passeios da Cidade Antiga, Mário Osório Magalhães, 2000), foi renomeado como Lobo da Costa. 

O centenário de nascimento suscitou destaques em 1953, e posteriormente o sesquicentenário em 2003. Já existia o Instituto Lobo da Costa e na Academia Pelotense de Letras a cadeira de Lobo da Costa. No século XXI, a Prefeitura batizou escola infantil com o nome do escritor, no bairro Pestano, rua Catorze, nº 196. Em 2013, a Câmara instituiu 12 de julho como o Dia do Poeta Pelotense.

Fora de Pelotas, há ruas com seu nome em Porto Alegre, Santa Maria, Passo Fundo, São Leopoldo, Esteio, Presidente Lucena, Viamão, Guaporé, Gravataí. Fora do Rio Grande do Sul, Campos dos Goytacazes (RJ) tem uma rua Francisco Lobo da Costa (supomos seja o poeta gaúcho).

Em seu aniversário 160, postei o artigo Francisco, poeta de 34 anos. Confira o artigo de Elvo Clemente Lobo da Costa e a Revolução Farroupilha (1985). Confira vídeos sobre Lobo da Costa no YouTube.

Bagual, o xucro

Bagual está nos dicionários de português e de espanhol, como regionalismo platino. Nesta nota vemos três possibilidades etimológicas: corru...