sábado, 10 de agosto de 2024

Bagual, o xucro

Bagual está nos dicionários de português e de espanhol, como regionalismo platino. Nesta nota vemos três possibilidades etimológicas: corruptela indígena do espanhol caballo, o nome de um antigo cacique da área platina (da tribo mbeguá), ou algum termo tupi-guarani. Todas estas hipóteses têm raiz no século XVI (até 1600), quando os cavalos chegaram da Europa.

Em português, refere-se a um cavalo semisselvagem, ou pessoa acavalada. O sentido estendeu-se do cavalo bravio para um sentido adjetivo (primeiro gado e outros animais, pessoas depois): xucro, intratável (v.: Wikcionário, Michaelis, Novo Aurélio). Consideremos que, em zona rural americana (não só platina), o personagem xucro ou rebelde muitas vezes é heroico ou admirável, não um vilão social. 

Em zona urbana, é mais provável considerar bagual como sinônimo de cavalo, seja no bom sentido (pessoa forte e valente; coisa legal) ou pejorativo (pessoa tosca e incivilizada; bicho arredio). A romantização do nativismo já levou a idealizar a grossura como virtude e a definir o gaúcho do campo como um bom selvagem, sensível sem deixar de ser bruto. No fim deste post, veja a canção "Espantando bagual".

Em espanhol (somente platino), o DRAE dá os dois sentidos (cavalo não domesticado, e pessoa insociável) e um terceiro, no feminino baguala: canto folclórico indígena, originalmente cantado em versos lentos, e acompanhado de percussão. Wikipedia em espanhol dá detalhes de todos estes usos platinos.

Nos países do Prata, o termo se associa primariamente com o rural e a liberdade do pampa, um sentido existencial e humano, bem além do animal. O canto improvisado dos diaguitas (norte argentino), desconhecido no Brasil, ganhou esse nome (v. vídeo de baguala) talvez pela extrema simplicidade, ou pela tristeza que vem do abandono e solidão.

A hipótese hispânica

Vocabulario Rioplatense Razonado (V.R.R.) explica tratar-se de corruptela do espanhol caballo, que na fala indígena teria dado cahual e depois bagual. 

  • O cavalo foi trazido pelos espanhóis, mas se fez selvagem ao espalhar-se, sem dono, pelos pampas ao sul de Buenos Aires. Os ameríndios ouviram dos conquistadores o nome (caballo) do animal que não conheciam e assimilaram em sua fala como cahuallu, cahuellu e cahual. Posteriormente, os espanhóis tomaram dos indígenas este último termo, adaptado na pronúncia castelhana como bagual, para referir-se aos animais que achavam em estado indômito, mantendo caballo para o manso. Ao voltar para os lábios espanhóis, depois de passar pelos dos indígenas, a palavra castelhana sofreu adjetivação (como selvagem, xucro, desobediente). - tradução sintetizada do V.R.R. (Granada, Magariños, Valera, 1890, p. 98-99).

Esta hipótese também é citada pelo brasileiro Nelson França Furtado (1969, verbete Bagual, p. 28). O argentino Héctor Zimmerman menciona duas, e esta é a secundária: o espanhol caballo foi transformado no guarani cavayú e no pampa cahual, sendo que deste último saiu "bagual", qualquer animal não domesticado ("Tres mil historias", Aguilar, 1999, p. 262).

A hipótese indígena

O Dicionário da Academia Espanhola (DRAE) dá como origem de bagual o nome de um cacique. O acima citado Zimmerman (1999), como explicação principal, diz ter este adjetivo procedência "do cacique querandi Bagual, famoso pela bravura e pelo nomadismo de sua tribo". Ele realmente existiu?

Achamos no blog Genealogia de Zárate um artigo sobre Juan Bagual, chefe dos querandis (carandins) ou mbeguás, grupo étnico que existiu nas planícies argentinas. A Academia Espanhola tem registros desde o século XVI das palavras bagual e beguá.

Desde a chegada dos espanhóis, muitos indígenas eram cristianizados em reduções fechadas; dizia-se que ficavam "encomendados" a um líder espanhol. Como mantinham sua liberdade, podiam fugir da redução. A seguir um resumo do artigo.

  • Em 1582 Juan Bagual ficou encomendado com sua tribo, fugiu em 1599, foi recapturado em 1604 e voltou a revoltar-se, suscitando ações militares do governo, que o fizeram entregar-se em 1610. Dele disse o governador Marín Negrón: "estes bárbaros são os mais fortes e duros de domar entre todas as nações do mundo". A redução de San José del Río Areco, atual município de Zárate, ficou conhecida como "del bagual"; ela ficou em ruínas em 1690 mas nas proximidades existe até hoje um povoado lembrando seu nome (Paraje El Bagual). Os seguidores desse cacique ficaram conhecidos como baguais, e quem o sucedia na liderança adotou o sobrenome, caso de Pedro de Bagual. Diz o texto que toda essa rebeldia (dos indígenas) originou o significado de "bagual" como animal ou pessoa selvagem ou asselvajada (v. artigo de Genealogia de Zárate).

E de onde veio o nome do cacique Bagual? Dos beguás? Ou os beguás tiveram esse nome pelos cavalos? Como não há mais notícia dessa tribo além do século XVI, provavelmente fosse um grupo pequeno, ou fosse um nome provisório, adotado em função de algum fator local ou de uma situação.

O etimologista Antônio G. Cunha (2007) diz que "bagual" tem origem guarani. Priberam considera que vem do tupi baguá, forma usada no Paraná, como se informa no Vocabulário Sul-rio-grandense (Globo, 1964). O mais explícito é Deonísio da Silva, que cita o étimo guarani mba'gwa, passando pelo espanhol platino bagual. Temos também no tupi mbiguá, pé redondo (nome do biguá ou cormorão), segundo Nelson França Furtado (1969, p. 30).

Luiz Carlos de Moraes (1935) diz que Granada (coautor do V.R.R.) propõe, como alternativa à hipótese hispânica (caballo - cahual - bagual), o seguinte argumento:

  • Os indígenas, que não conheciam o cavalo nem o boi, e não tinham palavras para nomeá-los, formaram expressões novas, em guarani. Designaram o boi tapira-ciui-aca-uara (grande como tapir, ruminante, chifrudo e estranho, estrangeiro). Com o cavalo, formaram mbaê-guara (coisa - estranha, desconhecida), palavra que foi fácil, tanto ao português como ao espanhol, transformar em "bagual", em referência ao cavalo selvagem, procedente daqueles trazidos da Europa em meados do século XVI. - L. C. Moraes, resumido do Vocabulário Sul-rio-grandense (1964, p. 49).
É mais esclarecedor buscar a origem de "bagual" do lado castelhano, onde está mais dicionarizado, há mais hipóteses etimológicas, mais história desde o século XVI, e mais lugares (rios, montanhas, povoados) batizados com esse nome. Por outro lado, todos os pesquisadores brasileiros consultados indicam origem platina ou indígena mas não sabem o significado. 

Qual o argumento mais provável? O trecho histórico abaixo parece sintetizar a melhor conclusão: que os beguás e os baguais seriam o mesmo grupo de indígenas. Juan Bagual devia ser seu chefe.
  • Los indios querandíes eran también conocidos por beguaes desde el siglo XVI. [...] El estado de rebeldía casi permanente en que vivieron los beguaes, beguales o baguales determinó que el nombre gentilicio de esos indios se utilizara muy justificadamente para designar el ganado alzado o cimarrón (registro histórico da Academia Espanhola). - Os querandis eram conhecidos também como beguás (...). Sua permanente rebeldia fez que o gentilício "beguá" servisse, muito justamente, para designar os animais fugidos ou bravios. 
Cacique: do taíno (povo caribe das Antilhas) kasike, rei, assimilado por outras línguas através do espanhol, já nos inícios do século XVI, sempre com o sentido de líder político, mandachuva.
Xucro: do quíchua chucru, duro, que passou ao espanhol como chúcaro e deste ao português. 
Platino (em espanhol, platense): relativo à bacia do Rio da Prata. Não se trata de um rio, mas de um grande estuário dos rios Paraná e Uruguai. A busca por prata (plata) e minérios nas montanhas originou a denominação também da Argentina, país central da região. 
Argentino (do latim argentinu), relativo à prata, prateado, argênteo. Os países platinos incluem Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai, sendo que Chile e Bolívia partilham alguns elementos culturais e geográficos. 

Espantando bagual
Mano Lima, 2000.
Putututu, 'temo domando,'Temo aprendendo, 'temo ensinando.
O homem é igual ao cavalo, quando é bom já nasce pronto,Mas a vida é que dá o pealo, para deixar de ser potro.O cavalo se ajeita no freio, e o homem na luta em que passa:Um se conhece em rodeio e o outro na causa em que abraça.
Putututu, 'temo domando,'Temo aprendendo, 'temo ensinando.
O mundo é que doma o homem, e o homem é que doma o cavalo:Uns atropelam no laço, e outros já nascem domados.Não sou xucro, nem domado; sou manso só de selim.Se me botarem no arado, quebro a coice o balancim.

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