A cantora e compositora Lara Rossato é natural de Dom Pedrito, município da Campanha gaúcha (antes denominada pelo IBGE mesorregião Sudoeste). Com muito humor, ela fala frases da zona de fronteira, sem chegar ao portunhol. Veja aqui o vídeo no Instagram (29-1-24).
O portunhol (portu-guês + espa-nhol) é o português com termos castelhanos intercalados, mistura usada em toda a faixa de fronteira, do lado de cá (do lado de lá, é o espanhol com inserções de português). Além do estilo "salada de ingredientes", também há hibridismos, formas espúrias, que não existem em nenhum dos dois idiomas.
Nesse segundo vídeo sobre sotaque (veja aqui o primeiro), ela não explica essas expressões da fronteira, seja por conhecidos ou por compreensíveis; o que ela quer mostrar é o sotaque (sua pronúncia é gaúcha, mas não é rural; está influída pelos muitos anos que viveu em Pelotas e Porto Alegre). Aqui veremos a etimologia dos regionalismos, de acordo aos dicionários. Confira o que ela diz.
- Tô bem de bem e tu?
- Que borrachera tava o guri, ainda chegou em casa e tomou uma tunda de pau.
- Tá, te acalma tchê!
- hein, tu viu que deu uma pechada lá no centro?
- Né, não vou sair nem a pau, tá babando água.
- Ah ma' vai te deitar, bá, me 'floxa um pouco.
- pára de inticar com a guria.
- oigaletê porquera, bota loqueteio né
- ah não, te larguei pras cobra!
- [Obrigado!] Merece!
Bá! (Interjeição de espanto). Barbaridade! Mas bá! Mas que barbaridade! (Aurélio, Wikcionário e Michaelis registram "bah", neste sentido). A mesma interjeição existe em português (Priberam) e espanhol (RAE) no sentido de indiferença, desdém (aí o tom de voz fica mais grave e seco). Priberam registra os dois significados como "bah" e como "bá 2", sem relacionar com "barbaridade" (bah poderia equivaler a má, pá, psss...). E por que esse agá final, ninguém explica.
Borrachera (espanhol). Borracheira, bebedeira. Neste sentido de ebriedade, Aurélio (1975), Wikcionário e outros atribuem ao espanhol borracha, recipiente para vinho.
No português, a borracha passou também ao sentido de "látex", mas os dicionários não dizem como. A dedução lógica seria que, na extração do látex ou goma vegetal, se usassem sacos de couro (já chamados borrachas). Veja a segunda acepção "por analogia" no Michaelis, e a 5ª acepção no Priberam (recipiente elástico).
Flóxa. Flôxo (Aurélio) é do espanhol flojo, onde o verbo é aflojar, afrouxar. Na fala inculta, "rouba" se diz róba; pousa, pósa. Popularmente, também se troca: baixar/abaixar, chegar/achegar, entrar/adentrar, perceber/aperceber. Me afrouxa (me 'flóxa), me dá um tempo. Trata-se de um híbrido de idiomas; em espanhol se diria aflójame, solta-me.
Guri, guria. Do tupi kiri, e/ou guarani ngiri, pequeno. Aplicado ao bagre novo e por extensão a crianças. Usa-se no espanhol platino como gurí / gurisa.
Inticar. Enticar (Aurélio), implicar, provocar, importunar, mexer com alguém. Altercar, brigar, discutir. Michaelis atribui ao latim intaedicare, entediar. É muito mais provável que seja uma alteração de "intrigar", por sua vez de intrincar, do latim intricare, emaranhar, enredar. Está nos dicionários de regionalismos gaúchos, mas provém de Portugal, mais usado em Açores (Priberam), de onde vieram imigrantes ao sul do Brasil.
Loqueteio. Do adjetivo "louco" sai louquejar, loucura e louquice; também enlouquecer e enlouquecimento (todos no Aurélio). Em espanhol: loco, loquear, locura, enloquecer (não dicionarizados: loquillo, loqueo, payaseo). Mas o povo cria termos e conceitos: loucurada, louquear, louquejada. Se houvesse "louquete" como diminutivo carinhoso, o substantivo seria louqueteio. Como em pastoreio, devaneio, veraneio.
E de onde vem louco/loco ? Encontramos o étimo árabe no dicionário da RAE: lawqa, estúpido. Note-se que em línguas não ibéricas usam-se outros termos (francês folie, italiano folia).
Merece! Dizem que em Pelotas surgiu esta resposta para agradecimentos. Equivale a "não há de quê; não precisa agradecer", mas em formato positivo, amoroso: "o mérito é teu". Kleiton e Kledir a incluíram na canção Pelotas. Também está nesta lista de termos pelotenses.
Oigaletê! Do espanhol óigale, ouça-lhe, escute! A sonoridade transformou a palavra numa interjeição de espanto (como bá), que aparece no Aurélio em suas formas oigalê (óigale aportuguesado) e oigatê ("ouça-te", forma inventada por quem não sabe falar espanhol). Para enfatizar a sonoridade do trissílabo, o gaúcho criou nova forma: oigaletê, ouça-lhe-te! Oigalê, moça linda!
Pechada. Do espanhol pechada, peitada, golpe ou encontrão com o peito (DRAE, 2ª acepção). Está no Aurélio, Vocabulário sul-rio-grandense (Globo, 1964) e Priberam como choque físico, embate (entre pessoas ou entre cavaleiros) e como pedido de dinheiro. Nenhuma fonte anota como o único sentido usado em Pelotas e região: batida de carros em área urbana. A pechada foi feia mas ninguém se feriu.
Porquêra. Porqueira, porcaria. Em espanhol, porquería, ou porquera, lugar de porcos. Em sentido abstrato, o gaúcho entende como: briga, confusão, enredo, degradação (Vocabulário sul-rio-grandense, Globo, 1964). Deu numa grande porqueira (num imenso problema). Não é pouca porqueira (não é algo insignificante).
Tchê. Do espanhol platino che (v. DRAE), interjeição para chamar pessoas (equivale a ei, ouça). Aurélio registra como ché e chê, pronunciado como tchê. Sua possível origem na língua quíchua e mapudungun, onde significa "gente" (v. Wikipedia em espanhol), explica seu uso atual como interjeição ou como um vocativo genérico (cara, homem, cidadão): Tchê, me dá uma informação! Tchê, não sei tê dizer.
Tunda. Do latim tundere, golpear, tundar. Surra, sova. Usa-se mais em espanhol, pois existe o verbo tundir. Tê dou uma tunda dê laço!
Para conhecer algo de Lara Rossato, veja reportagem ZH De Dom Pedrito para o mundo (julho 2016) e Entre humor e música regionalista, de uma semana atrás.
Lara era o nome de uma náiade, divindade grega das aguas doces, que era muito falante, e na mitologia romana ficou conhecida como Tácita. Rosso é vermelho, em italiano, e se aplica a pessoa ruiva, com o cabelo avermelhado (rossato). O vídeo abaixo é para ratificar que a Lara tem grande expressão oral e corporal, e não é ruiva.
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